É tão vasta a noite na montanha. Tão despovoada. A noite espanhola tem o
perfume e o eco duro do sapateado da dança, a italiana tem o mar cálido mesmo se
ausente. Mas a noite de Berna tem o silêncio.
Tenta-se em vão ler para não ouvi-lo, pensar depressa para disfarçá-lo, inventar
um programa, frágil ponte que mal nos liga ao subitamente improvável dia de amanhã.
Como ultrapassar essa paz que nos espreita. Montanhas tão altas que o desespero tem
pudor. Os ouvidos se afiam, a cabeça se inclina, o corpo todo escuta: nenhum rumor.
Nenhum galo possível. Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio?
Desse silêncio sem lembrança de palavras. Se és morte, como te abençoar?
É um silêncio, Ulisses, que não dorme: é insone: imóvel mas insone e sem
fantasmas. É terrível — sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibilidade
de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e "diga" alguma coisa.
Ele é vazio e sem promessa. Como eu, Ulisses? Se ao menos houvesse o vento. Vento é
ira, ira é a vida. Mas nas noites que passei em Berna não havia vento e cada folha estava
incrustada no galho das árvores imóveis. Ou se fosse época de cair neve. Que é muda
mas deixa rastro — tudo embranquece, as crianças riem brincando com os flocos, os
passos rangem e marcam. Isso durante o dia é tão intenso que a noite ainda é povoada.
Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar
do silêncio como se fala da neve. O silêncio é a profunda noite secreta do mundo. E não
se pode falar do silêncio como se fala da neve: sentiu o silêncio dessas noites? Quem
ouviu não diz. Há uma maçonaria do silêncio que consiste em não falar dele e de adorá-lo
sem palavras.
A noite, Ulisses, desce com suas pequenas alegrias de quem acende lâmpadas,
com o cansaço que tanto justifica o dia. As crianças de Berna adormecem, fecham-se as
últimas portas. As ruas brilham nas lajes e brilham já vazias. E afinal apagam-se as luzes
das casas. Só um ou outro poste iluminado para iluminar o silêncio.
Mas este primeiro silêncio, Ulisses, ainda não é o silêncio. Que se espere, pois
as folhas das árvores ainda se ajeitarão melhor, algum passo tardio talvez se ouça com
esperança pelas escadas.
Mas há um momento em que do corpo descansado se ergue o espírito atento, e
da Terra e da Lua. Então ele, o silêncio, aparece. E o coração bate ao reconhecê-lo: pois
ele é o de dentro da gente.
Pode-se depressa pensar no dia que passou. Ou nos amigos que passaram e
para sempre se perderam. Mas é inútil esquivar-se: há o silêncio. Mesmo o sofrimento
pior, o da amizade perdida, é apenas fuga. Pois se no começo o silêncio parece aguardar
uma resposta — como arde, Ulisses, por ser chamada e responder; — cedo se descobre
que de ti ele nada exige, talvez apenas o teu silêncio. Mas isto os da maçonaria sabem.
Quantas horas perdi na escuridão supondo que o silêncio te julga — como esperei em
vão ser julgada pelo Deus. Surgem as justificações, trágicas justificações forjadas,
humildes desculpas até à indignidade. Tão suave é para o ser humano enfim mostrar sua
indignidade e ser perdoado com a justificativa de que se é um ser humano humilhado de
nascença.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Clarice Lispector